28 de março de 2008

China e a Etapa Primária do Socialismo


Atualmente os chineses são os que mais elaboram, ou melhor, desenvolvem o marxismo. Não se trata de nenhuma surpresa, afinal diuturnamente as demandas de uma nação controlada por comunistas impõem soluções rápidas. Mais, as especificidades da formação social chinesa -, seu tamanho territorial e da população (e seu nível cultural), o nível de desenvolvimento das forças produtivas, a influência – no âmbito da superestrutura - de modos de produção proscritos, seus limites em recursos naturais, a correlação de forças em âmbito mundial, entre outras determinações -, demandam investigações científicas que trazem como conseqüência novas elaborações que atualizam e enriquecem o legado teórico do marxismo.

Por Elias Jabbour*

Uma das sínteses das inúmeras elaborações diz respeito a uma chamada “etapa primária do socialismo” na qual a China se encontra e se encontrará ainda por algum tempo. O que vem a ser dita etapa?

O surgimento do termo em Preobrazhenski e o “modelo soviético”

O economista russo Evgeni Preobrazhenski (1886-1937) foi o primeiro a se referir a uma chamada “etapa primária do socialismo”(1).
O economista russo tornou-se famoso pelas análises da relação entre inflação e industrialização em economias agrárias atrasadas e em estado de isolamento internacional, como a Rússia revolucionária. A oposição que fez à implementação da NEP era substanciada pelo diagnóstico, onde a industrialização russa passava por uma forte necessidade de investimentos, cujos efeitos (geração de renda, p. ex.) se sentiriam antes do aumento da produção. Logo, uma onda inflacionária colocaria em risco a aliança operário-camponesa (2).
A “etapa primária do socialismo” em Preobrazhenski seria uma formatação geral onde a chamada harmonia entre superestrutura e base econômica seria possibilitada. Este estágio da transição teria como objetivo a formação de uma acumulação primitiva socialista. Tal estágio - alcunhado e análogo ao processo de acumulação primitiva capitalista descrito por Marx no final do Livro 1 de O Capital – partiu do princípio de que o processo de financiamento da economia russa seria impossível nos quadros de uma economia isolada (impossibilidade de acumular divisas estrangeiras), logo a industria se via sem condições de “puxar” o processo de acumulação e financiamento.
Assim, a acumulação primitiva socialista, em Preobrazhenski, seria possível nos marcos de trocas desiguais entre a agricultura e a indústria. Os problemas da inflação e do investimento seriam resolvidos na transformação, ou desvio, dos excedentes camponeses transformados em consumo para o investimento. Esse processo - descrito superficialmente - convencionou-se chamar de “modelo soviético de desenvolvimento” (3).

O problema chinês

Os chineses a partir de 1978 passam a determinar de maneira mais clara o conceito de “etapa primária do socialismo”. A superação desta etapa, porém – no caso chinês – deixou de ser pela via do “modelo soviético”, para a via de uma NEP em proporções gigantescas.
A opção pelo “socialismo de mercado”, ou de forma mais suscinta, transformar os excedentes comercializaveis dos camponeses em poupança inicial, traria e trouxe a solução de pelo menos três óbices: 1) reversão das trocas desiguais, agora amplamente favoráveis aos camponeses; 2) solucionar a questão do abastecimento alimentar e formação de um mercado consunidor para produtos industrializados (bens de consumo) e 3) recompor assim o pacto de poder de 1949, caracterizado pela hegemonia camponesa, base esta desgastada com a proibição de comercialização de produtos agrícolas da era-Mao.
O leitor pode se perguntar se os efeitos (inflação) indicados por Preobrazhenski por conta da aplicação da NEP, não poderia ocorrer. Respondo que sim, a inflação corroedora de salários atingiu em cheio a China no final da década de 1980, sendo um dos estímulos à rebelião contra-revolucionária de junho de 1989. A capacidade de importação de máquinas e a consequente formação de um Departamento 1 Novo (indústria mecânica pesada), abriu soluções a este problema.

A definição do termo em Deng Xiaoping

Retornando, logo a classe camponesa numa formação social específica, como a chinesa, poderia desempenhar um papel muito mais ativo no processo de acumulação do que em outros países, como a Rússia.
O pressuposto da solução via camponeses médios elaborada por Deng Xiaoping, foi sintetizado na caracterização de uma formação social (no caso, chinesa) que se encontraria ainda na etapa primária do socialismo, como segue: 1) formação social onde a maior parte da população está ocupada na agricultura e dependente do trabalho manual; 2) escassez de recursos minerais; 3) ciência e tecnologia atrasadas; 4) grandes disparidades regionais de ordem econômica, social e cultural; 5) grande parte da população vivendo com dificuldades; 6) falta de autonomia tecnológica e de financiamento, e; 7) grande distância para com o nível de desenvolvimento do centro do sistema (4).
Levando-se em conta a realidade russa em 1917 e a realidade chinesa em 1938 (o nível de desenvolvimento chinês de então, era semelhante ao verificado na Rússia em 1938), a definição chinesa de “etapa primária do socialismo” é equivalente à que demandaria numa realidade como a vivida por Preobrazhenski em Rússia quase medieval.

O caso brasileiro

Até que ponto, para o Brasil, poderia se enquadrar esta tal “etapa primáia do socialismo” elaborada nos termos levantados por Preobrazhenski e Deng Xiaoping?
Sinceramente muio pouco. Por que? Porque o Brasil já tem mais de dois terços da população vivendo nas cidades, temos um sistema financeiro (bancos estatais e privados e um mercado de capitais) pronto para carrear recursos aos sotores estrangulados da economia. Temos uma grande produção agrícola altamente competente e de ponta a nível mundial e um edifício industrial completo, inclusive com um Departamento 1 Novo na economia, pronto para fabricar trilhos, geradores, locomotivas, trens, etc. Temos excelência em pesquisas em todos os ramos científicos.
A nossa realidade é muito mais promissora que a vivida pelos russos em 1917 e os chineses em 1949 e 1978.
Uma república dos trabalhadores e das amplas massas populares (conforme nosso Programa Socialista) no Brasil partiria de uma situação onde seria mister aprofundar a industrialização no campo (nunca retornar à pré-história com propostas de cunho anticientíficas que se transformaram em senso comum na esquerda), manter uma classe privada de pequenos e médios produtores rurais, centralizar o sistema financeiro à servir de base à socialização da produção ao mesmo tempo em que novos campos de investimentos se abram nas cidades.
Por fim, acelerar o processo de automação industrial, ultra-necessário à libertação do home do jugo da máquina, no rumo da auto-gestão da produção.
Agora como nossa vontade não está acima das leis da natureza, continuemos no rumo da acumulação estratégica de forças.

Notas:
(1) DAY, R. B.: “Preobrazhenski and the Theory of the Transitional Period”. Soviet Studies 8. New York, 1975, p. 08.
(2) FILZER, D. (org.): “1921-1927: The Crisis of Soviet Industrialization: Selected Essays”. White Plains. Sharpe, London, 1980, p. 153.
(3)No que tange a regulação econômica durante o estágio de “acumulação primitiva socialista”, Preobrazhenski sugeria a coexistência de duas formas regulatórias: uma controlada pelo Estado (planejamento) e outra pautada pela lei do valor, ou seja, resultado da manutenção da produção privada de mercadorias e da propriedade privada. Trata-se de formas de mediar as diferenças existentes entre relações de produção socialistas e privadas coexistentes no período de transição.
(4) ZEMIN, Jiang: “Hold High the Great Banner of Deng Xiaoping Theory for an All-Round Advance of the Cause of Building Socialism with Chinese Characteristics into the Twenty-First Century”. Report to the Fifteenth National Congress of Communist Party of China. People’s Publishing House, Beijing, 1992, p. 15.

*Elias Jabbour, é Doutorando e Mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP, membro do Conselho Editorial da Revista Princípios e autor de ''China: infra-estruturas e crescimento econômico'' 256 pág. (Anita Garibaldi).

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