Texto-base de Elias Jabbour da apresentação “Conferência sobre a China” organizada pela Fundação Alexandre Gusmão e o Ministério das Relações Exteriores que ocorreu nos dias 17 e 18 de abril no Palácio Itamaraty (Rio de Janeiro) e que contou com a presença de cerca de duas dezenas de intelectuais entre eles brasileiros, argentinos, chineses e norte-americanos.
O “desenvolvimentismo com características chinesas”
Baseada uma grande autoconfiança num mundo de turbulências e mudanças drásticas, sendo a principal delas a desagregação da URSS e a conseqüente débâcle do sistema socialista mundial, a governança chinesa fez a correta escolha soberana – portanto, fora dos esquemas estratégicos dos EUA, como o fez a América Latina na década de 1990 –, de navegar no mar da “globalização” como forma de alcançar o objetivo de reprojetamento da China ao rol das grandes nações em um mundo marcado pelo rápido desenvolvimento das forças produtivas e pela existência de grandes potências.
Assim, e após o diagnóstico acerca da improbabilidade de uma 3ª Guerra Mundial envolvendo o capitalismo e o socialismo, a consecução dos citados objetivos centrou-se em uma participação ativa no já referido processo de “globalização”. Para tanto, fez praticar uma retificação de curso amplamente baseada tanto na capacidade milenar de comércio e de acumulação do camponês médio chinês (reconstruindo, assim, o pacto de poder vitorioso em 1949), quanto na constituição de um círculo internacional chinês espalhado pelo Sudeste Asiático. Círculo com poder financeiro suficiente para carrear ao continente seus excedentes, viabilizando, assim, tanto o financiamento externo da modernização e a indigenização de avançadas técnicas modernas de administração, quanto a solução de pendências históricas como Hong-Kong, Macau e principalmente Taiwan.
Como resultado, nos últimos 30 anos o país tem crescido ininterruptamente numa média que varia de 10% ao ano; deixando, assim, de representar 1% do PIB mundial, no início das reformas, para 4,2% em 2004. Seu comércio exterior cresceu em quase 100 vezes, pois em 1978 seu volume foi de US$ 20,6 bilhões e, em 2007, passou dos US$ 2 trilhões. Desde meados da década de 1990 ela é a maior receptora de capitais produtivos estrangeiros, sendo que em 2006 sua cifra foi de US$ 69,5 bilhões. Suas reservas cambiais em outubro último eram estimadas em US$ 1,45 trilhão.
Notável, também, fora a retirada de pessoas da linha da pobreza. Segundo dados devidamente amplificados pelo Banco Mundial, o número de pessoas abaixo da linha da pobreza na China diminuiu de 490 milhões em 1981 (ou 49% da população) para 88 milhões em 2003 (7% da população).
Houve um aumento de sua influência na economia mundial tão claro a ponto de qualquer mudança que vier a afetá-la internamente pode ser o estopim de grandes repercussões no mercado internacional. No período de 1999 e 2006 seu crescimento correspondeu a 29% do desempenho econômico mundial e, segundo Barros de Castro, se mantidas as taxas de crescimento tanto da China, quanto dos EUA, as duas economias se “encontrariam” em tamanho no espaço de 10 anos. Em 2000, a China representava 3,4% do PIB mundial; 11,6% do PIB calculado sobre a paridade do poder e compra (PPA); 6,6% do consumo de petróleo e 3,9% das exportações mundiais. Já em 2004 (já citado), representou 4,2% do PIB mundial (13,2% em PPA); 8,35 do consumo mundial de petróleo e 6,5% das exportações correntes no mundo. Tais números subiram desde o período, sem sobra alguma para dúvidas.
É grande evidência pressupor que dado o peso histórico, geográfico e populacional da China, esse processo – cujos números citados são expressão – em curso tende a criar uma nova geografia econômica do mundo, para onde se dirigem e saem fluxos financeiros, econômicos, políticos e culturais crescentes. Enfim, um grande imã que atrai e irradia movimentos gravitacionais e que edita uma grande reocupação de espaços perdidos desde o início das agressões estrangeiras em 1839.
Conseqüência desta “reocupação de espaços” é encerrada em seu crescente poderio financeiro como a tábua em que se assenta uma planificação do comércio exterior possibilitadora da implementação de uma convivência imediata com seu principal competidor estratégico que inclui – não espantosamente –, o financiamento dos chamados déficits gêmeos do próprio competidor estratégico. Porém, a grande expressão dessa nova força financeira internacional (lastreada historicamente por uma política comercial milenar e avassaladora) está na possibilidade de proscrição dos principais órgãos financeiros surgidos no âmbito de Bretton Woods, notadamente o FMI e o Banco Mundial – conforme a política africana e latino-americana da China vem demonstrando nos últimos anos.
Confúcio (551-489 a.c.)
A dimensão exata dos limites e contradições
Em momento de grande perplexidade com a velocidade e a forma com que o desenvolvimento muda a face da China, é de bom grado advertir que, ao lado do sucesso e da consolidação de pretensões de ordem mundial, o desenvolvimento na China também guarda sua face dolorosa e eivada de inquietações, que talvez sejam o próprio motor do processo em si. Uma economia em desenvolvimento não resolve problemas sem criar outros maiores, saltando de forma ininterrupta de um desequilíbrio a outro. E a China não foge à regra.
Assim, podemos de imediato relacionar três grandes fontes de limites, que se relacionam, ao processo em andamento na China. Trata-se da relação entre o tamanho de sua população, os recursos existentes em seu território e o modelo clássico de industrialização extensiva. Desta relação podem ser extraídas as principais contradições surgidas nessa esteira desenvolvimentista: a pressão sobre os recursos naturais, as desigualdades sociais e regionais e a danificação ao meio ambiente.
A população chinesa ainda não atingiu seu pico. O início de sua curva decrescente deverá ocorrer por volta de 2030, quando o país poderá chegar a 1,5 bilhão de habitantes. A sua economia corresponde somente a 1/7 da economia norte-americana e a 1/3 da japonesa, o que a coloca – apesar das duplicações do PIB pós-1978 – entre as economias de baixa renda per capita. Com 1/5 da população mundial, a China conta com somente 5% das terras em condições de plantio no planeta. Seus recursos hídricos per capita correspondem somente a 25% da média mundial. Os recursos chineses em petróleo, gás natural, cobre e alumínio per capita são da ordem de 8,3%, 4,1%, 25,5% e 9,7 das respectivas médias mundiais.
No campo de análise da produção industrial e do caráter extensivo caracterizado por um grande aporte de capital e trabalho, em detrimento da incorporação de novas tecnologias, podemos afirmar que esse tipo de produção é grande fonte de contradições, cuja superação é determinada pela incorporação de novos paradigmas tecnológicos capazes de acelerar a produtividade do trabalho. Não somente isso – conforme o desenvolvimento interno do país vem nos mostrando,também é necessário aprofundar a mudança em curso do modelo. O que significa dizer: fortalecimento da demanda interna e das empresas nacionais e lenta diminuição do fator comércio exterior na composição do PIB que passou de 22% em 1992 para a altíssima taxa de 47% em 2006. Significa também demonstrar a pressão sobre os recursos naturais originados desse tipo de organização industrial: atualmente a China necessita de 832 toneladas de petróleo para produzir US$ 1 milhão em riquezas, isto é, quatro vezes mais que os EUA (209 ton.), seis vezes mais que a Alemanha (138 ton.) e sete vezes mais que o Japão (118,8 ton.).
Os impactos ao meio-ambiente de 30 anos de industrialização rápida e ininterrupta também têm sido altos. Por exemplo, 70% das águas subterrâneas do país estão contaminadas, principalmente as localizadas no norte do país onde 60 milhões de pessoas seguem com dificuldade para dispor de água potável. Dezesseis das 20 cidades mais poluídas do mundo localizam-se na China que, por sua vez, ocupa o segundo posto em emissão de dióxido de carbono (apesar de sua emissão per capita ainda ser muito baixa), e o primeiro lugar na emissão de clorofluorebunetos e de dióxido sulfúrico por superfície habitada. Os prejuízos ao país somente no ano de 2005 foram da ordem de US$ 10 bilhões por conta dos efeitos da chuva ácida. Um agravante neste caso deve-se à previsão de crescimento do parque automotivo, que poderá saltar dos 20 milhões de carros em 2004 para 60 milhões em 2010 e a 90 milhões em 2015.
A explosiva, cíclica e milenar questão camponesa
A pressão sobre os recursos e os desequilíbrios ambientais, numa observação mais de fundo, devem ser vistos como parte de um conjunto que envolve a centralidade da questão social na China de hoje. De forma mais aguda e em perspectiva histórica, a questão social na atualidade é sinônimo de questão camponesa. Explosiva, cíclica e milenar, responsável pela queda de simplesmente todas as dinastias, a classe camponesa na China – cuja subjetividade é mediada por um espírito rebelde tipicamente taoísta – é o grande ator político do país e classe pela qual, de tempos em tempos, passa-se o crivo do merecimento ou não do mandato do céu. Eis um dos maiores desafios, de caráter estritamente político, a ser enfrentado pela atual geração dirigente.
Em que pese a grande façanha da inclusão na China, a grande verdade é que o ritmo do nível das desigualdades aumentou substancialmente. Além disso, apesar da pobreza rural ter diminuído, a pobreza urbana aumentou, pois entre 1999 e 2003 a pobreza urbana passou de 11 milhões, ou 2,5% da população, para 23 milhões, ou 4% da população urbana. Voltando à questão do aumento das desigualdades, se tomarmos o quoficiente 20/20 (parte da renda nacional dos 20% mais ricos e 20% mais pobres) perceberemos que o mesmo aumentou de 6,5 em 1990 para 10,6 em 2001. Este dado se confirma se partirmos das bases de cálculo do índice de Gini (10/10): entre 1999 e 2001 os 10% mais ricos passaram a deter de 24,6% para 33,1% da renda nacional. Enfim, a China de hoje é uma das sociedades mais desiguais do mundo.
No que tange às desigualdades regionais, o problema da concentração também é refletido. Entre 1990 e 2002 a renda média das cidades passou de 2,2 para 3,1 vezes mais alta que a do campo. A ampliação da renda rural em 2006 foi de 7,4%, enquanto nas cidades de 10,4%, denunciando – o que é óbvio –, que: as atividades urbanas são mais rentosas que as praticadas no meio rural; e a manutenção das diferenças campo-cidade redundam em cada vez maiores disparidades regionais seja na China, seja no mundo. Daí a necessidade de criar condições políticas, econômicas e infra-estruturais para uma cada vez maior absorção de mão-de-obra sobrante no campo para grandes centros urbanos – sejam eles centros já existentes ou em construção –, pois somente pela via da urbanização essa desigualdade, em médio e longo prazo, poderá ser equalizada.
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