No livro "La Monnaie Souveraine", os economistas Michel Aglietta e André Orléan definem a existência de três lógicas articuladas que sustentam a reprodução da ordem monetária enquanto dimensão essencial da ordem social: a confiança hierárquica, a confiança metódica e a confiança ética. "A confiança hierárquica se exprime sob a forma de uma instituição, o Banco Central, que anuncia as normas de utilização da moeda e que é responsável pela emissão do meio de pagamento final (...) A confiança metódica opera no âmbito da segurança das relações interindividuais, garante a reprodução quotidiana e rotineira dos atos que constituem a ordem monetária, sobretudo os pagamentos das dívidas nascidas do seu funcionamento (...) A confiança ética diz respeito ao caráter universal dos direitos da pessoa humana."
A economia capitalista não é um espaço homogêneo onde os desejos dos indivíduos utilitaristas se harmonizam ou, como pretendem outros desavisados, um sistema de "produção de mercadorias por mercadorias", senão uma organização social governada, para o bem e para o mal, pela lógica do enriquecimento privado. Os agentes privados, na busca do enriquecimento, tratam de romper - sim, romper - as regras existentes mediante a inovação e a transgressão sistemática das práticas rotineiras. Suas ações aventureiras, apoiadas no sistema de crédito, no mesmo movimento, criam a riqueza nova e desvalorizam a "riqueza velha".
Inquietos, os agentes da finança globalizada conseguiram, até agora, escapar das conseqüências das próprias estripulias. Com o ânimo açulado por intervenções salvadoras dos bancos centrais nos anos 80 e 90 do século XX, os transgressores progressistas, depois da festança das tecnologias da informação, investiram sua audácia na valorização dos imóveis e na conquista de clientela sem reputação e meios de servir os empréstimos contraídos.
As turbulências que ora atormentam os mercados financeiros demonstram que os deslocamentos radicais operados pelas inovações no sistema de crédito e nos preços dos ativos não configuram uma anomalia. Correspondem à razão interna de uma economia voltada para a acumulação ilimitada da riqueza monetária, mediante a produção de mercadorias. Se possível fosse, esse estorvo desagradável seria dispensado.
Para desapontamento de muitos, o funcionamento da sociedade capitalista de mercado, fundada no enriquecimento privado, depende da capacidade do Estado de manter o equilíbrio instável e contraditório entre as três formas de confiança. A instituição responsável pela gestão da moeda, o Banco Central, ao intervir no sistema privado de crédito, tem um olho no peixe e outro no gato: cuida de evitar a deflagração do crash e, ao mesmo tempo, trata de reafirmar a vigência das normas que garantem a soberania do representante da riqueza universal. Não bastasse isso, o Estado moderno não pode escapar aos constrangimentos da "confiança ética" mencionada por Aglietta e Orléan. Em termos práticos: o Estado americano não será poupado de contemplar os interesses dos cidadãos vitimados pela atual crise imobiliária, o que inevitavelmente sobrecarregará os seus compromissos fiscais e monetários.
Não é pacífica a convivência entre o mundo da finança - constituído pelas instituições, regras e procedimentos relacionados com a avaliação da riqueza - e a política democrática, entendida como o âmbito por excelência da escolha humana, da busca da liberdade. Tampouco é incontroversa a questão das peculiaridades da gestão monetária e de seus limites. Não há modelo que possa ser estabelecido como absoluto ou considerado único. A não submissão dos atos de gestão monetária aos interesses particularistas - sejam eles os da política ou os dos grandes negócios - é impossível de ser assegurada a priori. Os defensores do "Banco Central Independente" - sempre escorados em algum suposto sobre a neutralidade da moeda e a estabilidade da demanda deste ativo pelos detentores de riqueza - argumentam que é necessário prevenir as tentações de estripulias monetárias praticadas por conta do "ciclo político".
A independência do Banco Central é entendida como uma forma de limitar as influências do poder privado ou dos governos de turno no exercício da administração monetária. A capacidade de impor limitações está, no entanto, submetida a hipóteses contaminadas por preconceitos ideológicos. A idéia de que é possível impor normas homogêneas e previsíveis aos mercados supõe, além de comportamentos improváveis dos possuidores de riqueza, condições iguais de poder financeiro e de acesso à liquidez entre os centros privados de decisão - digamos, entre o morador do Bronx e o J.P. Morgan.
Esse conto de fadas ignora - o que é mais grave - a possibilidade de captura do BC pelas "forças do mercado", descuido imperdoável diante das "realidades" da vida econômica moderna. A ortodoxia monetária, em qualquer de suas versões, toma como um princípio o que, na realidade, é um resultado que depende fundamentalmente dos movimentos da concorrência entre os poderes privados, empenhados na luta feroz pela acumulação monetária. Os conservadores não admitem a existência de diferenças de poder entre os agentes privados. Os bancos centrais estão, portanto, submetidos a tensões permanentes. Os credores e proprietários da riqueza líquida costumam exigir mais "austeridade" e os devedores e despossuídos pedem mais generosidade por parte das políticas monetárias. Estas políticas definem, na verdade, as condições de acesso à liquidez, ao obscuro objeto do desejo.
A chamada política de metas, por exemplo, pretende - a partir de uma série de indicadores prospectivos - estabilizar expectativas privadas, mediante o compromisso de manter a inflação dentro de um intervalo de variação, fixado em torno de um objetivo central. Como o velho monetarismo, a política de metas supõe que as decisões privadas são racionais e que o "jogo da confiança" só pode ser burlado pela violação das regras pelas autoridades eleitas. Trata-se do truque de desconsiderar as bruscas alterações nas expectativas (ou nos interesses) das instituições privadas mais influentes.
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